A riqueza dos rios brasileiros para geração de eletricidade é uma bênção da natureza ou uma maldição?
Poucos países no mundo desfrutam de um sistema hídrico tão generoso quanto o nosso. Os livros escolares apontam mais de 55 mil quilômetros quadrados cobertos por água, distribuídos em rios, lagos e riachos. É a abundância de rios e quedas-d’água que produz o enorme potencial de energia hidráulica. Hoje, estão em operação mais de 180 grandes usinas, responsáveis por quase 70% da produção nacional de energia elétrica. Isso também faz do país o segundo maior produtor de energia hidrelétrica no mundo, com 12% da geração mundial, perdendo apenas da China. Segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), órgão ligado ao Ministério de Minas e Energia, outros 73 projetos hidrelétricos estão em construção, incluindo as pequenas centrais. E mais 24 estão programados até 2020. A lista de projetos deve atender à crescente demanda.
A imensa necessidade de energia é explicada pela expectativa de fortalecimento da economia brasileira. Nos últimos cinco anos, o país cresceu em média 4% ao ano, o que nos posicionou como a sexta maior economia do planeta. Um dos aspectos mais visíveis desse bom momento foi a ascensão de mais de 30 milhões de brasileiros à chamada nova classe média. Os consumidores emergentes não hesitam em comprar televisores, geladeiras, freezers, computadores, celulares e toda a sorte de eletrodomésticos – e, com isso, aumentam o consumo de luz.
O governo federal aposta na expansão de diferentes matrizes de produção. A geração de energia nuclear, que, no passado, era o alvo preferencial dos ecologistas, deverá crescer 70% com a entrada em operação da usina Angra 3, prevista para 2016. Os investimentos também serão generosos na promissora alternativa eólica. Mas, mesmo com essa diversificação e o aumento de capacidade de outras fontes, mais da metade da expansão energética se dará por meio das grandes hidrelétricas. Serão acrescidos ao sistema mais 30 mil megawatts – potência suficiente para abastecer as regiões Norte e Nordeste juntas. Para pânico dos ambientalistas, quase toda a nova capacidade instalada deverá ocorrer na região amazônica.
A construção e a utilização de usinas pode ter uma série de conseqüências negativas, que abrangem desde alterações nas características climáticas, hidrológicas e geomorfológicas locais até a morte de espécies que vivem nas áreas de inundação e nas proximidades. O desajuste do regime hidrológico afeta a biodiversidade da planície e pode acarretar a interrupção do ciclo de vida de muitas espécies (mais comumente de peixes de grande porte e migratórios) e a multiplicação de espécies sedentárias (de menor valor), o que, conseqüentemente, afeta as populações ribeirinhas que vivem da pesca.
Ao expulsar comunidades de seus locais de origem, a inundação das represas também provoca impactos socioeconômicos de difícil superação, especialmente no caso de populações de baixa renda e que apresentam condições precárias de educação, saúde e alimentação.
As preocupações relativas aos efeitos danosos dos empreendimentos hidrelétricos convergem sobretudo para a região amazônica, devido às peculiaridades locais. Em primeiro lugar, a área abriga a floresta amazônica, maior bioma terrestre do mundo, e declarada patrimônio nacional pela Constituição Federal (art. 225), o que torna mais complexas as negociações para instalação de quaisquer empreendimentos que provocam impactos ambientais e culturais. Além disso, é a região onde se encontra a maior parte das comunidades indígenas brasileiras, que pela Constituição Federal não podem ser removidas de suas terras — exceto em casos de catástrofes ou epidemias que ocasionem riscos à sua população, ou para defender a soberania do país (o aproveitamento de recursos hídricos nesses locais só pode ser feito com a autorização do Congresso Nacional, e depois de ouvidas as comunidades implicadas). Adicionalmente, a fragilidade de seus ecossistemas; seu atributo de regulador climático do continente; sua riqueza em minérios e madeira; o fato de ter grande parte de sua extensão ocupada pela floresta tropical úmida (da qual depende seu ciclo hidrológico); e as intensas tensões sociais existentes na região, entre outros fatores, exigem precauções singulares para o aproveitamento do potencial da região.